O jequieense Antônio Jeferson faz seu relato de uma constrangedora situação presenciada. Clique e saiba mais.

06/04/2022

O pelourinho nosso de cada dia
OU
O dia em que conheci um capitão do mato e uma sinhazinha

Salvador é a Roma negra cantada por Caetano. É a cidade mais negra fora da África. Aqui é nosso solo sagrado. Aqui chegaram muitos navios negreiros. Mas a ESCRAVIDÃO ACABOU! Que fique avisado para quem aqui quiser visitar! 
Aqui é Terra de Mãe Menininha do Gantois, do Senhor do Bonfim, Iemanjá, de todos os santos e orixás. Aqui é terra de dor, choro, sofrimento e, infelizmente, ainda não dá para cantar que a carne mais barata “foi” a nossa. Ainda somos  a carne mais barata do mercado e que vai parar debaixo do plástico - como recém aconteceu com os meninos de Gamboa. Mas, acima de tudo aqui, é terra de resistência, do afeto, do acolhimento e da alegria.
Ontem, porém, fiquei profundamente triste (e enquanto escrevo e rememoro é impossível não me emocionar). Na verdade, ontem fui tomado por um misto de sentimentos: raiva, nojo, tristeza, impotência, desesperança… Estávamos no Santo Antônio Além do Carmo, um lugar lindo, com moradores que são como síndicos do Pelourinho. Há ateliês de arte, hotéis e belos restaurantes. Entramos em um deles. O restaurante é de comida africana e tem uma vista linda. Me senti em casa desde que cheguei. Na verdade, já havia gostado do lugar desde a última vinda nossa, pois passando na sua frente presenciei uma mulher preta - numa autoridade dessas que só tem quem é abençoada com uma forte ancestralidade - encerrar uma discussão entre dois guardadores de carro e, com afeto típico de quem traz na alma a maternagem africana,  perguntar ao mais agitado, depois de lhe acalmar, se ele queria entrar no restaurante e comer. Senti que naquele lugar havia gente que gosta de gente. Ao menos a dona e sua equipe.
Ontem, então, fomos atendidos por duas maravilhosas mulheres e, apesar de saber os seus verdadeiros nomes, pois sempre faço questão de perguntar isso às pessoas que me atendem, aqui as chamarei de Naña e Janaína.
O restaurante estava num clima maravilhoso. E eu me via em várias mesas – coisa rara, pois muitas vezes, em restaurantes, além de mim, poucos ou quase nenhum preto está sentado à mesa (comecemos a reparar isso nos lugares que frequentamos e não aceitemos e nem arrumemos desculpas medíocres para justificar).
Eu estava feliz! Brinquei com uma criança linda que estava com seus pais e até um livro ela veio me mostrar. Tiramos fotos do lugar e elogiamos cada detalhe que não passam
despercebidos aos olhos de dois observadores. Não havia uma vez que Nanã passava na mesa e que não fazia alguma brincadeira com a gente. Ríamos muito. Parecia que estávamos na sala de casa rodeados de bons amigos. 
Tudo estava perfeito, mas logo sentiria um gosto amargo na boca. É que eu presenciei uma cena dessas que me deixa com o misto de sentimentos: na mesa ao lado, havia um casal. Uma elegante senhora de óculos escuros. Vou chamá-la de Sinhazinha. O acompanhante de Sinhazinha era um rapaz, aparentemente mais jovem que ela. E vou chamá-lo de Capitão. Se quiserem pensar em capitão do mato, fiquem à vontade. E sim, Capitão era negro. E violência vindo de um de nós sempre me dói mais. Depois de algumas trocas de carinhos e risos (um pouco sem graça para o meu gosto), eles pediram uma água. O restaurante estava cheíssimo e Nanã e Janaína estavam dando conta das mesas sozinhas. Nanã trouxe a água, o deixou na mesa do casal e saiu; de imediato, Capitão a chamou de volta. Era pra fazer outro pedido, pensei. Mas só vejo Nanã abrindo a garrafa de água e a servindo nas taças. Ouço Sinhazinha falar algo para ela, que eu desconfiei e confirmei depois – fora um pedido de desculpas. Ao que Nanã, com uma leveza, uma alegria e uma paz, responde: imagina, isso é meu trabalho! 
Entendi tudo e foi aí que a boca ficou amarga e o corpo trêmulo. Raiva. Conto para o meu irmão. Mas precisava ouvir de Nanã se foi mesmo o que estava pensando. 
Foi. 
Capitão a chamou para servi-lo. Para que ela abrisse a garrafa d’água que estava em sua frente e a servisse em seu copo. Quem me conhece sabe que, a essa altura, já estava espumando de raiva e me controlando para não ir lá ter um papo direto - pois estou cansado. Estamos! Não é de agora que estamos ensinado. Chega! 
Eu e Nanã fizemos piada, dizendo que talvez ele estivesse com a mão machucada. Na verdade, a mão dele estava ocupada. Ocupada com a arrogância, com o racismo, com o machismo, com o desejo do poder. A mão dele estava ocupada carregando a bandeira defendida por muitas e muitos. Se fosse político, poderia chegar até a presidência do país, ou ser o mais novo Sérgio Camargo (o ex-presidente da Fundação Palmares).
Nanã me fala que já está acostumada, que já passou por coisas piores, e completa “mas fazer o que se daqui tiro meu sustento”. Sustento. Dor. Disse a ela que aprendi com minha mãe que não devemos nos acostumar com o que não presta. Que sentia muito por tudo isso. E fiquei pensando nas “coisas piores”. 
Eu e meu irmão falamos sobre outras coisas. Mas eu não conseguia esquecer o que aconteceu. Nanã seguiu rindo e atendendo todos perfeitamente bem - inclusive Capitão e Sinhazinha. Em alguns momentos, entre risos e brincadeiras, soltávamos algumas indiretas. Melhor: pequenos recados de melhoramentos. Precisamos aprender a constranger essas pessoas. Parece que ele percebeu. Em algum momento perguntou o nome de Nanã e lhe sorriu ao trocar de mesa. Foi para ficar mais próximos da vista. Ou talvez incomodados com nossa amizade com Nanã e Janaína e os recados de melhoramentos.
Não importa, foi bom não tê-los tão perto. A raiva estava ocupando muito espaço entre nossas mesas. Depois de tanto tempo, perguntar o nome da Nanã e seu sorriso amarelo não adiantou nada. A violência já havia sido feita. Assim agem. Machucam, ferem e depois se fingem de bonzinhos. E sim, se para alguém isso não foi uma violência, para mim é. Expandamos o conceito de violência para não naturalizarmos violações diárias.
Para alguns não haveria problemas se ainda vivêssemos a escravidão institucionalizada. Porém, isso não os impedem de agir como sinhás, coronéis e capitães do mato, a alimentar o racismo e outras violências do sofrimento nosso de cada dia. Pelourinho atualizado. 
Não pude falar nada para ele. Como queria. Depois de um tempo, meu irmão, me conhecendo como conhece e vendo o quanto fiquei impactado, me perguntou: vai vir textão né? Sim, né?! A única coisa que posso fazer. Falei para Nanã que escreveria sobre e esse texto vai ser enviado para ela. 
Não consegui escrever poeticamente como de costume. Estou seco. Mas espero que tenha alcançado o objetivo de pensarmos algumas questões em conjunto. Quantos Capitães e Sinhazinhas conhecemos ou já vimos agindo? Quantas vezes praticamos essas violências? Nos façamos mais perguntas…
E embora a Sinhazinha tenha pedido desculpas a Nanã, ela foi cúmplice, pois não deveria ter deixado ele chamá-la para abrir a água. De desculpas nosso povo está de saco cheio. Não pude fazer muito, mas ao sair, ainda engasgado, abracei Nanã demoradamente - desses abraços de negro para negra que têm uma força que parece um bálsamo nas feridas abertas das nossas almas, dos nossos corpos marcados pelas chicotadas diárias.
Te abraço agora novamente, Nanã.
Voltando a Salvador eu passo para te rever e darmos risadas. Espero que não tenha Capitão, pois não sei se aguentarei ficar só no textão.

Antonio Jeferson Barreto Xavier