A Folha e o Espinho na poesia de José Inácio Vieira de Melo. Por Ronaldo Correia de Brito.

04/03/2013

José Inácio Vieira de Melo me deu seu livro Pedra Só com duas lembranças da fazenda onde ele se esconde: um espinho de mandacaru e uma folha de algarobeira. Servindo de marcadores entre as páginas e os poemas, interpretei o espinho e a folha como símbolos da poesia de José Inácio: lirismo e sobrevivência, beleza e alimento. Uma vez por ano, na paisagem nordestina, o mandacaru se cobre de flores brancas, que exalam perfume embriagador e duram apenas uma noite. Abrem quando o sol se põe e mal o dia começa a clarear elas murcham. Parece a representação do fugaz. As longas pétalas e sépalas expõem a sexualidade floral do androceu e gineceu, celebram núpcias de algumas horas e depois se fecham e morrem. Uma floração passageira, diferente do mandacaru que teima em sobreviver ao estio, por anos e anos. O cardeiro plantado na fazenda Pedra Só lembra a poesia de José Inácio. Mas os versos se espraiam bem além das antíteses entre espinho e flor, acutilada e afago, devassidão e ascese. “Na Pedra Só, as formigas tecem as escrituras no abismo da noite tão enorme e o espantalho veste a seda do orvalho para receber de braços abertos, o sabor das auroras, o sagrado”. Zé Inácio não traçou meu roteiro de leitura. O livro abundante em memórias de gregos não possui um fio de Ariadne. O poeta não me revelou nada além da poesia e seus signos, de um espinho e uma folha, plantados como enigmas em meio às páginas. Ao acaso descubro na página 21 a folha da árvore mágica sertaneja, a algarobeira, “sempre verde ao chão vermelho, floreando mel sobre o voo das abelhas, poleiro das galinhas e das estrelas, maná de vagens amarelas, santa, santa, santa...”. Zé Inácio compôs para a árvore santificada uma litania de ecos, sons nutrizes como os frutos da algaroba, poesia alimento, concreta, antítese do efêmero representado pela flor do cardeiro. À sombra da árvore onde descansam cavalos, e cabras mitigam a fome, e agrônomos se queixam das raízes que chupam a água do solo e o empobrecem, e professores distribuem rações de sementes como se fossem chocolates aos alunos, e cães cochilam esquecidos, ali, resguardado à sombra, o poeta pensa em mulheres e sexo. “Incrustadas por brasas aflitas as fêmeas se enlaçam aos machos e afloram gerações e gerações para desfolhar as pedras de Deus”. E chegam para visitá-lo os poetas que o acompanham no exercício de sentir o mundo, a corporação de ofício de que fazem parte Ruy Espinheira Filho, Francisco Carvalho, Gerardo Mello Mourão, Florisvaldo Mattos, Mariana Ianelli, Bob Dylan e tantos outros danados, porque Zé Inácio nunca fica sozinho, o exercício da poesia é para ele o encontro com pessoas e música, para ouvi-las e pedir que escutem seus aboios. Também chegam os filhos Carlos Moisés e Gabriel Inácio, os compadres Gabriel Gomes e Ricardo Prado, o pai mandando por fogo na mata, o vento da Ribeira do Traipu e a madrugada sertaneja, vozes secas, aboio livre, outono e chuva de Páscoa. Chegam excitados e solenes e sentam enquanto esperam o banquete de poesia que será servido nas páginas de Pedra Só. “Só tua boca pode receber este mel e conhecer as liturgias das areias e saborear o sangue das origens no cálice que transborda nesta mesa”. Texto: Ronaldo Correia de Brito Ilustração: Juraci Dórea (Artigo publicado no Jornal A Tarde, no Caderno +2, na página 3, em Salvador-BA, em 2/3/2013)